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Guará vermelha – nosso próximo espetáculo de voo em bando.

Atualizado: 23 de jan. de 2023

Por Karen Menatti.

O voo da guará vermelha. Ah!!! Esse livro da escritora Maria Valéria Rezende!!! Como é bonito, como é bom!! Ele tem essa cadência poética, às vezes com a rima dada mesmo, daquelas que a gente já vai antevendo a construção da canção. Tem um jeito de fala, um jeito de palavras que cabem na boca da gente quando se lê. Tem também seus capítulos sempre com títulos de cores diversas, eles são assim “Cinzento e Encarnado”, “Amarelo e Bonina”, “Vermelho e Branco” e por aí vai, mas sempre em pares, feito as araras quando voam. A não ser pelo ultimo capítulo que se chama “Azul sem fim”. É de uma delicadeza que faz com que a gente vá percebendo o que estão vibrando aqueles personagens, aquela fase de sua história num jogo que nos vai conduzindo a possiblidades de matizes. Um contorno sensorial que me lembra muito o modo como o Ilo Krugli dirigia a cena. Ouvi muitas vezes ele dizer se referindo ao jeito como a música estava sendo executada: “Não, não é isso! Precisa de mais azul! É mais azul”É um jeito esse que vai tirando a gente das aparências e trazendo um quê de cheiros, de paisagens internas e externas, um quê de pássaro ou terra.


Rosálio e Irene são os dois personagens que tecem a história. Ele anda com uma caixa cheia de livros que ele não sabe ler. É um analfabeto que sonha sua vida com as letras. Ela sabe ler e escrever. É uma prostituta que lida com as histórias não exatamente pela letra, mas pelo seu corpo. O encontro dos dois é um desatador de nós, é uma picada na mata para um lugar desejado por ambos: o de ser visto/vista e considerado/considerada como um ser existente. Através das palavras, escritas - dessas da ponta do lápis no papel - e orais - dessas que sobem a garganta e saem pela boca- ele e ela vão dividindo suas histórias. Maria Valéria, que trabalhou junto ao professor Paulo Freire por anos, andou pelo nosso país e por outras terras trabalhando na rede latino-americana de alfabetização popular.

(Formada em Língua e Literatura Francesa, Pedagogia e mestre em Sociologia, Maria Valéria dedicou-se, desde os anos 1960, à Educação Popular, em diferentes regiões do Brasil e no exterior, tendo trabalhado em todos os continentes. Ela tem alguns jabutis em sua trajetória e ao final do texto, tem um link direto ao site para conhecer mais sobre ela. Maria Valéria em dado momento de sua trajetória esteve na mesma congregação que Ivone Gebara. Ler essas duas mulheres, Maria Valéria e Ivone é se dar de presente um respiro de sanidade. ) Não à toa o aprendizado dos personagens Irene e Rosálio é de mão dupla, numa construção dialógica. A filósofa andaluza Maria Zambrano, figura pela qual estou enamorada, diz em seu livro Filosofia e Poesia que “a realidade poética não é apenas uma realidade poética que existe, a que é; mas também a que não é; abarca o ser e o não ser em admirável justiça, pois tudo, tudo tem direito a ser, até o que nunca pôde ser. O poeta tira da humilhação do não ser aquilo que geme dentro dele, tira do nada o próprio nada e lhe dá nome e rosto. Ele não se esforça para que das coisas que existem, algumas sejam e outras não alcancem esse privilégio, mas trabalha para que tudo o que existe e o que não existe chegue a ser”. Acredito ser esse conceito dela muito afinado com o aprendizado freiriano também. Vejo Rosálio e Irene como pessoas que foram vistas, enxergadas, e que vão recebendo contorno de existência através do outro ser e da própria palavra e da própria história. Maria Valéria dá a esses dois personagens a possibilidade de viver mais um pouco através e por conta da palavra. Rosálio pode ser uma espécie de Sherazade, que conta suas infinitas histórias para que “um algo” em Irene viva mais. Irene permite que essas próprias histórias a alimentem e ensina a leitura a ele através dos pés que os dois pisam. As palavras, a língua mãe são o elo. Os oprimidos aqui não sonham opressores, sonham-se sim seres possíveis em um jogo de afeto explicitamente político e poderoso. O cuidado que os atravessa, o amor que os atravessa é das coisas mais bonitas. Não o cuidado romântico, mas sim aquele que se faz imprescindível. Também não há competição entre eles, e nem ingenuidade, como se uma fosse oposição a outra como nossos tempos nos forjam a pensar. Rosálio que ser um contador de histórias para reunir pessoas ao seu redor, como nas contações de rua. Irene que deseja uma vida mais digna.


E é partir deles que chegam tantos outros personagens, em todas as histórias que Rosálio conta, em todo o passado que Irene traz. Essas narrativas que se confundem com a história de nosso país e nos faz lembrar se apesar de não termos mais um número tão grande de analfabetismo como em outras décadas, o analfabetismo funcional ainda atinge um terço do povo brasileiro.


E nós, do Tijolo, nos achegamos a esse livro com o desejo do esperançar. Será nosso próximo trabalho coletivo presencial depois de 2016. Em 2020 iniciamos o “Tá tudo treta e a poesia rege”, que foi comido pela pandemia. A Guará Vermelha é uma ave muito bonita, de uma cor vibrante! E essa sua cor é assim por conta dos bichos que são seu alimento, os caranguejos vermelhinhos que chafurdam os mangues. E é como nós, que vamos nos tornamos o que vamos digerindo, de um jeito ou de outro, de todas as maneiras, por esses caminhos.


Eu gosto de pensar que algumas palavras me acompanham e vão se alternando conforme a lida dos dias, dos humores e calores internos e externos. Tem essa agora que é “Comover”. Mover junto, através de algo que te impulsiona o movimento. Aceitar a dança e também concebê-la, e ganhar o voo. Estendo esse sentimento ao nosso novo processo, porque nos sentimos assim diante dessa história, em comoção.


Em dado momento do livro, que começa no capítulo “Alaranjado e verde” conta-se sobre a saga de uma figura que constrói um teatro, uma figura que é um brincante, que conta histórias e vai atraindo aos poucos outros e outras que querem brincar com ele. Seu teatro nesse momento se chama Teatro do Céu, por ser no alto do morro. “A gente subia lá e se esquecia da vida. Se pudesse, todo mundo ficava a noite inteirinha assistindo sem cansar. Na semana, de noitinha, quase sempre se juntavam os artistas, na varanda, pra combinar os enredos que a gente ia apresentar. Aquilo era uma cachaça que uma vez pegado gosto ninguém queria deixar.”

A gente está assim, embebido e se embebendo uns aos outros, umas às outras, dessas palavras saltando afeto transformador que é O Voo da Guará Vermelha. Um espetáculo, no momento com o título provisório de "Guará Vermelha", que está dentro das ações do projeto da 37 Edição do Programa de Fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo e que tem por principal eixo celebrar o professor Paulo Freire, que teria feito 100 anos em 2021.

Estamos também chafurdando nas areias com essa Guará tem algum tempo e conforme formos tendo material de ensaio nós também vamos dividir um pouco aqui. Esse espaço do blog tem essa boa possibilidade. Assim como também outras reflexões nossas que queremos dividir.

E a gente segue se avermelhando pelos caminhos, feito ave. feito gente.

Karen Menatti.






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